quarta-feira, 28 de junho de 2006

'Ad botocundiam', essa falácia é nossa!

Pela natureza do meu ofício, sempre procuro estar atento à presença das variadas formas de manipulações, falsificações e falácias que permeiam as relações humanas. E se há algo que aprendi, é que, seja nas conversas na fila do banco ou analisando o conteúdo dos meios de comunicação de massa, todo cuidado é pouco. De uns tempos para cá, fazendo essa pesquisa de campo às vezes até de forma involuntária, ainda assim acabei por descobrir uma nova categoria de falácia. Só no Brasil ela poderia surgir, e aqui é usada compulsivamente. Deve ter suas versões devidamente regionalizadas em outras plagas, mas certamente é a expressão mais macabra e emburrecedora que o patriotismo doentio pode parir. Uma vez identificada, classifiquei-a de argumentum ad botocundiam.

O ad botocundiam, na verdade, é uma variante do ad verecundiam, o argumento de autoridade, e se refere ao Brasil, aos brasileiros, à cultura brasileira, como se em tudo isso existisse alguma autoridade per si. Ao defender o óbvio, ou coisas que deram certo em outros países pelo simples fato de que dariam certo em qualquer lugar, o botocudo usa o ad botocundiam para afirmar que “o Brasil é diferente”, “nosso caso é outro”, e pior: “ah, mas nós devemos encontrar soluções nossas”.

Ouço tais sandices e fico pensando o que há de tão especial num povo que mal consegue se ater aos fatos – e as provas estão aí - e não contorna problemas há muito tempo superados por outras nações. Mas que ainda assim se considera o supra-sumo da humanidade, com atributos diferentes do restante da raça humana; e, por isso, distinto demais para fazer o que é certo para os outros.

Constatei também que quem usa o ad botocundiam não percebe as implicações subjacentes de sua atitude: se o Brasil nada precisa imitar de outros povos, pois é um caso à parte, logo também nada tem a acrescentar ao mundo. Mas se disso você alertar quem usa essa falácia/patriotada, ele te ridiculariza, diz que você é um desertor, que se vendeu, que é um ressentido etc. Lógica, definitivamente, não seria o forte de quem usa o ad botocundiam.

É exatamente a tentativa de driblar a consciência dessa constatação – de que a Botocúndia está longe de ser exemplo para o mundo - que faz o usuário do argumentum ad botocundiam se exaltar tão facilmente. Pois a muleta psíquica, a prótese existencial de um povo frívolo não pode ser chutada assim, de forma tão implacável. Mais que uma falácia, o ad botocundiam mostra que a desinformação e o orgulho besta podem descambar na cegueira e fazer um país sucumbir a um estado de torpor ufanista mesmo quando a corrosão institucional, a decadência, e o caos social tornam-se praticamente sinônimos do seu nome.

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